Crítica: A Praia do Fim do Mundo

A convite do Festival Guarnicê de Cinema, a crítica Fabiana Lima, do Cinemafilia, produzirá críticas dos filmes que concorrem nas mostras competitivas de longas nacionais e curtas maranhenses. Os textos serão disponibilizados no site guarnice.ufma.br, no Cinemafilia e no Site Volts.

Guarnicê 2022 ocorre em formato híbrido entre os dias 23 e 30 de setembro, com patrocínio da Equatorial Energia, Governo do Maranhão e SECMA por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, além de apoio do Sebrae por meio do movimento Mobiliza SLZ.

O Guarnicê 2022 também conta com apoio da  Associação Maranhense de Desenvolvedores de Jogos Eletrônicos (AMAGAMES), Assembleia Legislativa do Maranhão, Astral Games, Bulldog Burguer, Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), Eduplay,  Escola de Cinema do IEMA, Fundação Sousândrade, Prefeitura Municipal de São Luís por meio da Secretaria Municipal de Turismo, Rádio Universidade, SESC, Teatro João do Vale e TV UFMA, além de cobertura do Site Volts.

Desde a cena de abertura, A Praia do Fim do Mundo já surpreende com toda sua beleza poética. A escolha do diretor, Petrus Cariry, por enquadrar, tão simetricamente, as mais lindas cenas de uma praia tranquila e deserta em preto e branco, seduz o espectador para esse mundo que realmente parece uma tela ou, simplesmente, um frame de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. Essa beleza, no entanto, não tarda em se transformar em medo. Seguindo à risca a ideia de o que é belo por vezes amedronta, a obra irá se aproveitar do que há de mais bonito nessa história e transformar a praia, aparentemente tranquila e sinônimo de paz, em uma espécie de protagonista cuja aparente serenidade é fato gerador de estranhamento e tensão. 

O fim do mundo se aproxima para quem ainda reside em Ciarema. A praia que antes abrigava uma infinidade de empreendimentos e dava gás a muitos sonhos, ora vista como a “Cancún” brasileira, se perde com o avanço do mar e a quantidade cada vez maior e incontrolável das ressacas. Enquanto o fim rapidamente se aproxima, Alice e sua mãe Helena refletem e confrontam sobre o luto que assola uma enquanto viúva e a outra, enquanto filha. O mistério da morte, nunca revelado, faz ambas viverem em constante sofrimento com a vivência que são obrigadas a conservar, e uma grande discordância no que tange ao futuro de ambas e da casa em que residem.

Ainda que em um primeiro momento o filme parece querer seguir essa direção mais dramática, focado na história de uma ambientalista e sua mãe teimosa, nessa batalha diária do luto, do segundo ato em diante percebemos que, na realidade, a chave para compreender a originalidade da trama está em um viés muito mais fantástico que tirará inspiração na história bíblica de Jonas e a Baleia para contextualizar seus acontecimentos mais surreais. Aos não muito cristãos, como eu, a história a qual me refiro é sobre um profeta que, ao negar a Deus, sofreu os castigos de sua renegação durante três dias e três noites no interior de uma baleia após pedir para os colegas jogarem-o ao mar para salvar todos os marinheiros de uma tempestade. No final, Jonas foi salvo quando orou e pediu perdão pela sua teimosia e desobediência. 

Esse conto bíblico aparece algumas vezes durante A Praia do Fim do Mundo, mas é especialmente ao final que ganha um sentido muito especial de questionamento e inquietação no espectador: quando Alice olha pela luneta uma enorme baleia que nos preenche a tela. Quando paramos para refletir, tanto a história de Jonas, como a história de Alice e Helena, são marcadas pela desobediência, uma cidade em ruínas, o medo do castigo e o mistério da vida e da morte. Nos perguntamos: afinal, o que aconteceu ao pai de Alice? Estaria ele vivo na figura do andarilho da praia? Ou estamos diante de uma grande alucinação que nasce por parte da ideia de uma esperança, seja ela qual for, de que ambas não terão de deixar a casa e de que o mar pode sim parar um dia de avançar?

Quando Alice vê a baleia, seria esta e sua gravidez a redenção de Ciarema, ou a certeza de sua condenação? Estaria a protagonista no papel de Jonas, uma pessoa que negou à Deus mas que, após tragédias, ora e busca por um milagre, um perdão? Talvez seu filho? Como a piscina que esvazia suas águas para o mar, em uma espécie de retorno, Helena se vai, em direção ao mistério da vida e da morte, mas não nos responde nada, pelo contrário, aumenta a incerteza sobre o futuro de Alice e da própria praia. Ficamos eternamente reflexivos sobre o que acabamos de presenciar, fruto de sermos apenas observadores, intencionalmente distanciados (seja pela distância que a câmera mantém de seus personagens, pelo uso do preto e branco como abstração da realidade ou pela trilha sonora mais extradiegética em muitos momentos, elemento principal na construção da tensão), mas ainda assim preocupados, com aqueles personagens dado o contexto de tragédia iminente em que estão inseridos. 

Essa incerteza e essa quantidade de material suficiente para dias e dias de intensa reflexão, é que me fazem achar a obra muito bem executada naquilo que pretendia, por meio do seu rigor formal e de suas referências. Gosto de pensar que A Praia do Fim do Mundo, para mim, guardou uma similaridade muito curiosa com o que Robert Eggers fez em O Farol (2019), em seu viés mais surrealista, enquanto preservou seu lado mais voltado para o drama familiar, que resgata um pouco daquilo que senti assistindo Nebraska (2013) de Alexander Payne. Caminha muito bem dentre essas duas linhas que, embora aparentemente distantes, fazem total sentido no que tange aos subtextos que ali coexistem.

Sua inusitada forma de subverter as expectativas de quem assiste e de manejar muito bem seu tempo no sentido de não se estender além da conta para criar uma narrativa suficientemente coesa, o filme de Petrus Cariry foi, sem pestanejar, uma grande satisfação. As técnicas foram todas perfeitamente aplicadas no sentido de criarem essa coesão imprescindível, que realmente se confia no poder das imagens para impactar o espectador a cada frame. É um filme para se olhar com muito cuidado, detalhe por detalhe, e engajar o máximo dos nossos pensamentos e referências cinematográficas, quando quisermos compreendê-lo em sua totalidade. Ou, ao menos, tentar.