Crítica: Noites Alienígenas

A convite do Festival Guarnicê de Cinema, a crítica Fabiana Lima, do Cinemafilia, produzirá críticas dos filmes que concorrem nas mostras competitivas de longas nacionais e curtas maranhenses. Os textos serão disponibilizados no site guarnice.ufma.br. Confira a crítica de Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho.

O Festival Guarnicê de Cinema

Realizado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC) da Universidade Federal do Maranhão, o Guarnicê 2022 ocorre em formato híbrido entre os dias 23 e 30 de setembro, com patrocínio da Equatorial Energia, Governo do Maranhão e SECMA por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, além de apoio do Sebrae por meio do movimento Mobiliza SLZ.

O Guarnicê 2022 também conta com apoio da Associação Maranhense de Desenvolvedores de Jogos Eletrônicos (AMAGAMES), Assembleia Legislativa do Maranhão, Astral Games, Bulldog Burguer, Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), Eduplay, Escola de Cinema do IEMA, Fundação Sousândrade, Prefeitura Municipal de São Luís por meio da Secretaria Municipal de Turismo, Rádio Universidade, SESC, Teatro João do Vale e TV UFMA, além de cobertura do Site Volts.

“Ambientado em um Brasil que não vemos, o filme de Sérgio de Carvalho poderia ser resumido como um olhar realista e honesto acerca da situação de jovens e crianças da periferia de Rio Branco após a invasão violenta e desenfreada de facções sudestinas e sulistas na região. Nessa história, acompanhamos a vida de três jovens diferentes. Um que luta contra o vício em pasta base de cocaína, outro que para sustentar a mãe rende-se ao narcotráfico e outra, mãe de um menino de dois anos, que sonha em fazer medicina na Bolívia ou em São Paulo. As diferentes trajetórias dos três personagens acabam se ligando por meio de diversos eventos, até culminar em uma grande tragédia. 

Mas, não é apenas isso. Noites Alienígenas acaba sendo, também, sobre a conexão perdida de um povo com a própria terra. Sobre a invisibilização daquela cultura e das suas próprias histórias, que têm sido violentamente esvaziadas daquele local. É sobre mostrar uma Amazônia urbana que é vítima da crueldade de quem ali não pertencia, de quem àquele lugar, sempre foi alienígena. Desde o início da história desse país, nos ensinaram a perceber povos indígenas como “os outros”, quando sempre se tratou de nós mesmos, nossa ancestralidade, nossas raízes. Mesmo quando alienígena, de fato, sempre foi quem àquele local trouxe a violência e o horror, quem deturpou a ordem de uma sociedade já muito bem “civilizada”. Mas, ainda assim, agredida.

Esse é o verdadeiro “estranho” que, agora, com outra face e em um diferente contexto, é a facção criminosa que “abduz” jovens e crianças para o narcotráfico e faz elas desaparecerem como pó, levadas pela brutalidade e pelo vício. Uma por uma, que vão se afastando, cada vez mais, da própria terra, seus antigos valores e convicções. É interessante perceber, inclusive, que essa questão acaba sendo uma das mais cruciais de serem retratadas para o diretor. As imagens, especialmente no que tange à representação da cultura índigena e a simbologia da cobra, são formas do diretor de nos apontar que a ancestralidade continua ali, resistindo. 

Para os povos indígenas, a cobra é símbolo espiritual de cura e seu papel cosmológico no que tange às comunidades amazônicas especificamente está relacionado diretamente com formas de ocupação, vida e trabalho em sociedades indígenas. Por isso faz muito sentido para o filme que a cena de abertura foque no animal em seus mínimos detalhes. Muito diferente da religião cristã, que enxerga a cobra como a figura do pecado, as comunidades indígenas atribuem ao animal esse importante papel religioso. A imagem da cobra, por si só, já é uma das formas de mostrar essa resistência.

Outra maneira, um pouco mais explícita e menos simbólica, é pelo personagem Alê, interpretado brilhantemente por Chico Diaz. Alê é essa figura que resiste incessantemente à ocupação daqueles que são “estranhos” àquele ambiente e que trouxeram, no seu ponto de vista, a desordem e a violência. Em seu monólogo inicial, o personagem de Chico divaga sobre outros mundos e experiências, canta Raul Seixas e parece sonhar em sair daquele lugar, enquanto instiga Rivelino a fazer o mesmo. No entanto, mesmo depois de tantos desejos compartilhados, a conversa termina em tom de desânimo e irritação, após ser interrompida pelo som de um chamado vindo da rua. 

Ali, naquele momento, já sabia que seria assim todo o resto do filme. É como se a esperança fosse apenas temporária, e a impotência de todos os personagens, diante da possibilidade de realizar seus próprios sonhos, fosse inevitável. Não há saída no beco em que todos se encontram, a não ser a abdução. Isso se torna bastante claro em uma das mais criativas e importantes cenas do filme: a tragédia da morte de um dos personagens pelo tráfico. Nela, há uma grande explosão de cores que gera contraste com o resto do filme, quase todo filmado por meio de luz natural, com cores pouco vivas. É nesse clímax contrastante que tudo se transforma em luz, e as cores alucinantes e o trabalho de som realizado, simulando a abdução do personagem falecido, chama nossa atenção e arrepia. 

É exatamente quando sabemos que estamos diante de uma grande direção, capaz de nos emocionar e nos fazer pensar. Nesta cena e em várias outras ao longo do filme, quando se decide por adotar o ponto de vista de cada personagem, é impossível não refletir, principalmente, sobre como enxergar a dependência química, em todo Brasil, se tornou cada vez mais questão de saúde pública e sobre como encarar a guerra às drogas como uma questão apenas de Governo e poder de polícia é inútil para resolver a situação. 

A obra é, na verdade, muito ativa em abordar todos os seus temas e, com exceção da simbologia da cobra, se recusa a colocá-los no local de subtextos. Por exemplo, quando intercala imagens das trajetórias dos personagens com músicas, não perde a oportunidade de nos colocar em contato com o “rap”, esse estilo de música que veio diretamente das periferias, para contar um pouco mais sobre a vivência dessa realidade que não vemos, por meio das rimas. Nesse sentido, Noites Alienígenas não foge à maioria dos filmes feitos nos últimos anos no Brasil no que tange à proximidade de um viés mais político e de protesto, já visto em filmes como Marte Um, Marighella e Medida Provisória.

Não à toa, obviamente. Enfrentamos uma série de questões urgentes e estamos em um momento político onde a região amazônica enfrenta um dos seus momentos mais críticos de desmatamento e tentativas de silenciamento e apagamento de comunidades indígenas. Acredito que nessa importância temática e no significado da obra para um estado que até o seu lançamento não tinha nenhum filme feito para o Cinema, reside boa parte do mérito do filme de Sérgio de Carvalho, para além claro da sua capacidade de gerar comoção e do seu elenco extremamente sintonizado. 

O Cinema, assim, vem como um instrumento político de reação, que mostra para o Brasil que o Acre existe e que essa realidade é, sim, importante e merece ser vista. Uma representatividade que embora muito esteja em voga em outros filmes, nem sempre é tão bem retratada como neste.”